Tratamento fisioterapêutico da osteonecrose da cabeça do fêmur

A osteonecrose da cabeça femoral é uma doença incapacitante que provoca diversas limitações nas atividades da vida diária e na própria deambulação.2 Caracteriza-se pela morte do tecido ósseo em decorrência da privação de suprimento sangüíneo podendo ser de origem traumática, devido a fraturas, luxações e ampla desnudação do periósteo, ou não traumática em decorrência de longos períodos de corticoterapia, doenças metabólicas entre outras. É também designada por necrose avascular, necrose isquêmica ou necrose asséptica.1,9,10,14

Rockwood (1993) descreve a necrose asséptica como uma complicação microscópica e precoce que ocorre em conseqüência da isquemia tissular e a diferencia do colapso segmentar tardio que se caracteriza pelo colapso do osso e da cartilagem adjacente ao osso necrosado e produz processos degenerativos da articulação acometida.

As fraturas proximais do fêmur, os métodos de fixação dessas fraturas e as luxações acentuadas da articulação coxo-femoral podem interromper o aporte sangüíneo da região desencadeando um processo de necrose avascular de origem traumática. A principal fonte de irrigação sangüínea da cabeça do fêmur advém da artéria circunflexa femoral medial que na fossa troncantérica origina os vasos retinaculares que percorrem todo colo até atingir a borda cartilaginosa da cabeça femoral. A artéria circunflexa femoral lateral irriga o trocânter maior e se ramifica juntamente com a circunflexa femoral medial.1,6,11 As fraturas transtrocantéricas são as fraturas mais comuns do terço proximal do fêmur, no entanto as fraturas do colo do fêmur são as que mais comumente produzem necrose isquêmica justamente pela anatomia vascular da região.6,11,12

Anualmente ocorrem cerca de 10 a 20 mil novos casos de osteonecrose somente nos Estados Unidos, afetando a população em sua fase mais produtiva. A idade média é de 30 a 40 anos, sendo o sexo masculino mais acometido que o feminino.2

Na fase inicial da doença pode-se constatar radiologicamente preservação do espaço articular, mas com a evolução do quadro patológico a cabeça femoral perde sua configuração esférica e o espaço articular vai reduzindo chegando a desenvolver processo de osteoartrose do quadril.11

A classificação da necrose avascular do quadril utiliza o sistema de Ficat que correlaciona os sintomas apresentados com as alterações radiológicas. Com o advento tecnológico e o uso da ressonância magnética surgiram outros métodos de classificação que também são bastante utilizados, o mais útil deles é o Sistema da University of Pennsylvania que baseia-se nas alterações radiográficas apresentadas.1

A artroplastia total do quadril é um método categórico no tratamento de osteonecrose da cabeça femoral, mas a idade dos pacientes influencia muito na escolha do procedimento cirúrgico. Como a faixa etária acometida pela osteonecrose do quadril varia entre 20 a 50 anos a protetização total do quadril traz resultados desfavoráveis. Entretanto, existem diversos estudos que relatam novas técnicas de tratamento a fim de adiar ao máximo a artroplastia, entre elas citamos a CD (“core descompression”) método caracterizado pela formaçao cirúrgica de túneis ósseos para descomprimir a medular e propiciar a neovascularização do local afetado. A osteotomia transtrocantérica de rotação de Sugioka visa mudar o centro de carga da cabeça femoral afastando da área necrótica. Um dos procedimentos mais utilizados é a descompressão da área necrosada com enxertia óssea (da tíbia ou fíbula).3,5,9

Materiais e métodos

Este estudo relata o caso de P.R.L.N., de 24 anos, sexo masculino, destro, mecânico naval e velejador, que apresenta um quadro de osteonecrose pós-traumática da cabeça femoral esquerda.

O instrumento de coleta utilizado foi a ficha de avaliação da Clínica de Prevenção e Reabilitação Física da UDESC na qual constavam os dados referentes ao exame físico como inspeção, palpação, goniometria, perimetria, testes de força muscular e avaliação postural.

A anamnese registrou as informações relatas pelo paciente sobre a história natural da doença (mecanismo de lesão, sintomatologia, evolução do quadro patológico, limitações nas AVD’s) e história pregressa. Foi utilizado também o Índice de Severidade da Osteoartrose do Quadril de Lequesne et al 15 e o Método de graduação funcional do Quadril de Merle D’Aubigné & Postel 9 (Quadro 1).

Quadro 1. Método de graduação funcional do Quadril de Merle D’Aubigné & Postel

Escala

Dor

Mobilidade

Caminhar

0

Intensa e Constante

Anquilose com posição ruim do quadril

Não consegue

1

Intensa mesmo á noite

Nenhum movimento, dor ou ligeira deformidade

Apenas com muletas

2

Intensa, impede qualquer atividade

Flexão < 40°

Apenas com bengalas

3

Tolerável c/ atividade limitada

Flexão 40-60°

C/ bengala por menos de 1 hora, s/ bengala muito difícil

4

Leve quando anda e desaparece com o repouso

Flexão 60-80°; consegue alcançar os pés

Longo tempo c/ bengala, curto tempo s/ e c/ claudicação

5

Leve e inconstante; atividade normal

Flexão 80-90°; abdução ao menos 15°

S/ bengala, mas c/ claudicação

6

Sem dor

Flexão >90°; abdução de 30°

Normal

Fonte: Revista Brasileira de Ortopedia9

O paciente relata ter sofrido um acidente automobilístico há dois anos onde fraturou o terço proximal do fêmur esquerdo (fratura transtrocantérica), que foi reduzida cirurgicamente através da aplicação de parafuso de fixação dinâmica (DHS) e placa de estabilização trocantérica. Apresentou infecção no pós-operatório que foi controlada com antibioticoterapia. Faz uso de muletas desde a cirurgia e refere que após, aproximadamente, sete meses do acidente iniciaram os primeiros sintomas tais como dor, incapacidade de apoiar peso e dificuldade de movimentar o membro inferior esquerdo (MIE). Desde então os sintomas se agravaram e o mesmo notou a presença de estalidos durante a movimentação ativa do quadril afetado. As limitações nas AVD’s progrediram impedindo-o de velejar e dificultando o seu trabalho como mecânico, no entanto ainda continua trabalhando.

Em janeiro de 2006 realizou exame radiológico cujo laudo registrou fratura do terço proximal do fêmur esquerdo reduzida com osteossíntese e consolidada, apresentando esclerose óssea da cabeça femoral esquerda sugestiva de osteonecrose e redução do espaço articular da coxo-femoral esquerda (fig. 1). Em abril de 2006 foi submetido à cirurgia para retirada da placa e do DHS (fig. 2) e no final do mesmo mês procurou atendimento fisioterapêutico.

Cabe ressaltar que há quatro anos o paciente sofreu luxação do quadril direito (contralateral) devido a um acidente de motocicleta. Realizou redução cirúrgica e apresenta cicatriz na lateral do fêmur direito.

Figura 1. Radiografia da cabeça do fêmur de 01/2006: controle de osteossíntese

Figura 2. Radiografia da cabeça do fêmur após retirada da DHS e da placa em 04/2006

A avaliação fisioterapêutica foi realizada no dia 26 de abril de 2006 na Clínica de Prevenção e Reabilitação Física da UDESC e as queixa referidas pelo paciente foram dor durante a movimentação ativa do quadril esquerdo, fraqueza muscular e dificuldade de caminhar descarregar peso no MIE. No momento o paciente não faz uso de medicamentos e aguarda artroplastia total do quadril.

À inspeção constatou-se postura antálgica e claudicação durante a marcha com muletas, redução da amplitude de movimento do MIE, crepitação e estalidos audíveis durante movimentação do quadril esquerdo, diferença de trofismo entre os membros inferiores confirmada na perimetria descrita abaixo cujo ponto de referência (0 cm) utilizado foi o platô tibial (tabela 1).

Tabela 1. Perimetria dos membros inferiores

Coxa

Perna

0 cm

10 cm

20 cm

30 cm

10 cm

20 cm

30 cm

MIE

35,0

35,5

40,0

45,5

30,0

28,5

22,0

MID

34,0

37,0

44,5

49,5

32,0

29,0

22,0

MI: membro inferior; E: esquerdo; D: direito.

À palpação verificou-se uma leve hipotonia do MIE em comparação com o membro contralateral, cicatriz na região lateral da coxa esquerda com alguns pontos de aderência e cicatriz na região da lateral coxa direita. Foi também avaliada a discrepância de membros inferiores não sendo constatada significativa diferença. Na goniometria foram avaliadas as amplitudes de movimento ativa de ambas as articulações coxo-femorais (tabela 2). O paciente apresentava incapacidade de realizar a movimentação do quadril esquerdo associada à flexão do joelho por isso não foi realizada a goniometria desses movimentos. O exame da força muscular (FM) avaliou os principais grupamentos musculares do quadril e do joelho e está descrito na tabela 3.

Tabela 2. Goniometria da articulação coxo-femoral

Movimento

Grau(°)

Flexão

Extensão

Abdução

Rotação Externa

Rotação Interna

MID

MIE

68°

18°

32°

40°

30°

60°

10°

26°

26°

20°

Tabela 3. Prova de função muscular dos membros inferiores

Grupo Muscular

Grau de FM

Flexores do Quadril

Extensores do Quadril

Abdutores do Quadril

Flexores do Joelho

Extensores do Joelho

MIE

3

3

3

3

4

MID

5

5

5

5

5

Os testes especiais realizados foram Tomas, que resultou positivo demonstrando o encurtamento dos músculos isquiotibiais, principalmente do membro inferior direito, e Trendelenburg que teve resultado negativo para ambos membros inferiores.

À avaliação postural verificou-se que paciente apresenta alterações compensatórias a diminuição da mobilidade do quadril esquerdo, a dor, bem como forma de proteção. Dentre essas alterações encontramos: inclinação pélvica para direita, anteversão pélvica, rotação pélvica para direita, rotação interna dos joelhos e hiperextensão do joelho direito.

O resultado do Índice de Severidade da Osteoartrose do quadril de Lequesne et al, que avalia as principais dificuldades encontradas pelo paciente nas atividades da vida diária como caminhar, ficar muito tempo numa mesma posição, dormir, calçar sapatos entre outras, constatou extrema severidade, visto que na soma total o paciente alcançou 17 pontos.

No método de graduação funcional do Quadril de Merle D’Aubigné & Postel 9, o paciente se enquadra no grau 4 da escala apresentando dificuldade para andar sem o auxílio das órteses e com limitação de mobilidade.

Resultados

O tratamento fisioterapêutico de um quadro de osteonecrose traumática da cabeça femoral associada com osteoartrose da articulação coxo-femoral é bastante limitado. O objetivo principal é manter a função do membro acometido, diminuir a crepitação e os estalidos através da mobilização articular, promover a conscientização corporal evitando as compensações posturais, treinar a marcha com órteses e preparar o paciente para uma possível intervenção cirúrgica. 8,13

As três (3) sessões realizadas com o paciente deste estudo basearam-se na aplicação da cinesioterapia através de alongamentos ativos dos principais grupamentos musculares de membros inferiores com auxílio de faixas elásticas, Facilitação Neuromuscular Proprioceptiva (inibição autogênica), mobilizações ativas do quadril em todas as amplitudes usando a bola bigeminada, a bola suíça e exercícios na bicicleta estacionária.7,8,13

Devido ao quadro patológico avançado do paciente, a algia e as restrições de mobilidade, bem como, as restritas sessões fisioterapêuticas, não pode ser visualizada evolução clínica. Foi percebida apenas uma melhora na conscientização corporal e a diminuição das crepitações após as mobilizações do quadril.

Considerações finais

Este estudo foi realizado com intuito de relatar um caso de osteonecrose pós-traumática da cabeça femoral e através da revisão bibliográfica elucidar o quadro patológico dessa incapacitante enfermidade que acomete indivíduos jovens.

A principal queixa referida foi perda da mobilidade articular pela avançada incongruência e diminuição do espaço articular que dificultou o tratamento fisioterapêutico. Visto que o paciente encaminha-se para a artroplastia total do quadril a fisioterapia foi baseada em minimizar as dificuldades relatadas pelo paciente.

Referências bibliográficas

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  4. DRUMOND, S. N., SILVA ,A.L., DRUMOND, F. C.F. A bilateralidade na osteonecrose da cabeça femoral. Revista Brasileira de Ortopedia: Vol. 33, Nº 10, Outubro, 1998.

  5. FUJIKI, E. N. Tratamento da necrose avascular da cabeça do fêmur não traumática, grau III de Ficat, pela osteotomia transtrocantérica de rotação, técnica de Sugioka. Revista Brasileira de Ortopedia: Vol. 33, Nº 10, Outubro, 1998.

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  7. KISNER, C.; COLBY, L.A. Exercícios terapêuticos: fundamentos e técnicas . São Paulo: Manole, 1998.

  8. PLACZEK, J. D.; BOYCE, D.A.. Segredos em fisioterapia ortopédica: respostas necessárias ao dia-a-dia em rounds, na clínica, em exames orais e escritos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

  9. RANCANTI, M. A., CASTRO, R. C. R., VIEIRA, H. C. J. Dissociação clínico-radiológica após a “core decompression” (CD) no tratamento da osteonecrose da cabeça femoral. Revista Brasileira de Ortopedia: Vol. 33, Nº 10, Outubro, 1998.

  10. ROBBINS, S.L. Fundamentos de Robbins patologia estrutural e funcional. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.

  11. ROCKWOOD, C. Fraturas em adultos. São Paulo: Manole, 1993.

  12. SCHWARTSMANN, C.; LECH, O.; TELÖKEN, M. Fraturas: princípios e prática. Porto Alegre: Artmed, 2003.

  13. TIDSWELL, M. Ortopedia para fisioterapeutas. São Paulo: Premier, 2001.

  14. TUREK, S.L. Ortopedia: princípios e sua aplicação . São Paulo: Manole, 1991.

  15. Lequesne MG. The algofunctional indices for hip and knee osteoarthritis. J Rheumatol. 1997; 24: 779-781.


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